PRECISA-SE...
PRECISA-SE DE ALGUÉM. Fazioli colocou
esse anúncio no vidro traseiro de sua kombi. Embora não chamasse a atenção
desse alguém que tanto procurava, nunca desanimou. O PÃO NO FORNO. Um lembrete do dia que
amanhece e perfuma a rua lateral da padaria. Fazioli estacionou sua kombi por
ali enquanto se dirigia à porta principal para tomar café acompanhado de um
pãozinho com manteiga. MÚSICA AO LONGE. Ao piano o plim-plim de um
pica-pau pimpão, um dejavú a mais para martelar cadências que permitam alcançar
as larvas do besouro música. O momento apoteótico ardia em óleo de ferver
violoncelos, marimbas, pianos, violinos e clarinetas. A QUEM INTERESSAR POSSA.
Tchaikovsky tocava numa estação de rádio qualquer. Naquele momento o mundo
parou para se espremer e passar pelo buraco de uma agulha. Fazioli era apenas
uma criança e brincava no seu campinho de grama preferido. O som da Quinta
Sinfonia de Tchaikovsky nunca mais deixaria de tocar na cabeça dele. NOCAUTE
PELA ARTE. Assim como Julio Cortázar imagina que um conto é um texto que corre
em poucas linhas e em alta narrativa capaz de nocautear o leitor pela energia
altamente concentrada que possui, assim também acontece com a sinfonia de
Tchaikovsky que faz com que o menino Fazioli imagine daquela música como sendo algo sagrado, um tipo de oração. TECLAS PARA LÁ, TECLAS PARA CÁ. Crescer não é
necessariamente progredir. O progresso pressupõe fatores hereditários em uma
nação que prestigia seu cidadão com chusmas de acenos lucrativos. Fazioli
apenas cresceu, jamais progrediu. Esteve trabalhando como empregado em diversas
empresas. Trabalhou na Steinway como separador de teclas de piano negras que
eram enviadas a cada minuto para o setor de teclas brancas. Trabalhou na Fritz
Dobbert como separador das teclas de piano brancas que eram enviadas a cada
minuto para o setor de teclas negras. Trabalhou, finalmente, na Essenfelder
onde sua tarefa era juntar as teclas negras e brancas para a manufatura de teclados
completos para pianos. UMA KOMBI HIPPIE. Eis que Fazioli deixou de trabalhar
para os fabricantes de piano. Ele andou um tempo de banda em banda: ia para a
banda de lá, voltava para a banda de cá. Até que assumiu que os anos eram
sessenta e ele tinha vinte anos de idade, algo mais que suficiente para ele comprar uma kombi e virar
hippie. Os dias de folguedo e curtição estavam chegados. Manhãs de sol
filtravam suas músicas—dele e da brisa—ao agora gentil oceano e suas incansáveis marolas. Uma tarde, defronte da
Candelária, ele apostou com Antenor Pastinha, um professor aposentado da UFRJ,
de que ele, Fazioli, poderia passar um mês sem comer e ainda levantar dinheiro com isto. Depois
ele iria atravessar a Cordilheira, rumo ao Chile, e moraria na kombi pelo resto de
sua vida. O ARTISTA DA FOME. Isso ele aprendeu com K. um cidadão anônimo que
ele conheceu lendo O Castelo. Passou fome por um mês inteiro. Ficou verde de
fome. Depois se acostumou e se tornou um faquir. Deitou em cama de pregos, montou
num burro brabo, comprou ações da Petrobras e, finalmente, com dinheiro
bastante para milhares de cafezinhos acompanhados de pão com manteiga, ele
rumou para a Cordilheira dos Andes. O DIABO NO MEIO DO REDEMOINHO. Fazioli foi
para o Chile, mas não sem antes se despedir de Antenor Pastinha. O velho amigo
Antenor, cabelo ralo e branco sobrando pelas abas do eterno chapéu de feltro,
sabia tudo de vida encalacrada, sendo uma pessoa ajuizada, casada, alocada e
carimbada. Antenor fez votos de que Fazioli deixasse de ser faquir e voltasse a
ser o garoto que amava os Beatles e os Rolling Stones. Mas veio um vento mais
forte e levou embora a papelada que Antenor Pastinha carregava em sua pasta de
couro negro. Antenor, o ex-professor da UFRJ, correu atrás da papelada e nem
viu que no meio do imenso redemoinho que se formou na praça, um moço cabeludo entrara na kombi e
zarpava para um outro espaço-tempo, rumo Cordilheira dos Andes. VARRE VARRE VASSOURINHA. Uma arrogância dura três anos. Um cão sobrevive a três
arrogâncias. Um cavalo sobrevive a três cães. Uma pessoa sobrevive
a três cavalos. Um tubarão sobrevive a três pessoas. Um ganso
selvagem sobrevive a três tubarões. Um corvo sobrevive a três gansos
selvagens. Um cervo sobrevive a três corvos. Uma pulga sobrevive a três cervos.
Uma Fênix sobrevive a três pulgas. FILOSOFIA DA MONTANHA EM PÉ. O tempo é o passado
somado ao presente, acrescido de um futuro apenas imaginado. O tempo para
Fazioli não passava de jeito nenhum. De manhã à tarde o dia era sempre o mesmo.
Até o ponto da exaustão. Quando um aldeão da fazenda de criação de chinchila
que Fazioli comprou no norte da Argentina—sim, porque ele jamais atravessaria
os Andes—esse aldeão lhe chamou atenção para uma questão crucial: uma montanha
nasce de pé ou deitada? Parece incrível! Isso deixou Fazioli tão encucado que ele
resolveu abandonar a vida campesina na Argentina—ao retirar sua velha kombi do
galpão de feno—e voltar para o Brasil: “afinal, nasce ou não nasce em pé uma
montanha?”. PRECISA-SE DE ALGUÉM. Fazioli colocou esse anúncio no vidro
traseiro de sua kombi. Embora não chamasse a atenção desse alguém que tanto
procurava, nunca desanimou....
Beto Palaio
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