TITO E LAVÍNIA
“Não há. Nada lá. Não mesmo”,
balbuciou Lavínia ante a dúvida de que o silêncio anormal denunciava um
acontecimento funesto. Arrepios ao ouvir sinos da meia-noite na igreja
distante. Um descampado. O frio é um açoite. A noite é úmida e gelada. Os olhos
dela estão embaciados. Quando achamos que tudo vai bem. Um acendedor de
lampiões nos esquece apagados num canto da praça. Aquele que nos empresta lumes
em encadernações heróicas. Passos de uma notívaga em noite de inspiração
fugidia. A confecção de um conto é como uma missa que se reza. Quando um vento
mais forte vem na calçada de Copacabana e sopra dois imensos sacos plásticos em
direção à Lavínia: um deles era branco, o outro era negro. O vento que os
arrasta é caprichoso. O saco plástico branco passa rapidamente à direita dela,
e o saco negro corre pela sua esquerda. Que tipo especial de poder abastece o
acaso em momentos como este? Divisar o horizonte por esta época, meados dos
anos setenta, era praticamente impossível. Vivíamos a saltar de cratera em
cratera. Os dias amorfos seriam como bagas vermelhas, vulva de algumas poucas
alegrias, se assim fossem permitidas pelas autoridades regulatórias. Impossível
precisar quando se rompeu o dique da concupiscência, até então firmemente
contristado. Escrever é digitar democracias. Criar prosódias com o inexistir.
Quem há de se importar com isto? Ouve-se o ruído incessante de ondas que
invadem o calçadão da praia. Lavínia imagina isso desde que achou que o mundo
acabaria com o mar invadindo tudo. Uma preleção particular que não tinha
antecedentes. Alguns colegas a transtornavam na escola. Que alguns a
irritassem, ela não se importava. Mas ela leu uma novela onde o personagem era,
na trama, Tito Andrônico, um poderoso general da Roma Antiga, o qual volta
triunfante da guerra contra os visigodos. No entanto, a recusa de Tito em se
tornar imperador gera uma onda de vingança sem fim. As cenas por vezes chocaram
Lavínia, onde ela pensou em desistir de ler as descrições precisas de decapitações
e mutilações, além de um estupro e de uma cena de canibalismo involuntário.
Lavínia criou coragem e abriu a porta do texto, a qual a levou por um longo
corredor, no qual se ouvia o chiado de um telefonema onde um personagem errante
se comunicava desde a estalagem até as faldas de castelo distante. Ela evita se
livrar de suas culpas e castigos, todavia finalmente, para aquele castelo Lavínia
se dirige, e vem depositar, interinamente, num específico corredor, criado a
contento do autor, neste entre tantos corredores, as suas dúvidas civilizadas,
para finalmente adentrar, não sem titubeios, o magnífico quarto de Tito
Andrônico. Ele ainda dorme. Seu elmo e sua armadura peitoral estão ao pé da
larga cama de mogno. Sua espada ao alcance da mão. Tito ronca suavemente. Seu
rosto demonstra velhice e cansaço. Lavínia descompassa a leitura: sono,
senilidade antecipada, exaltação, parentes afins, sobremesa, fieira de peixes,
conchas, retalhos de corpos, féretro, cores de anil, perfume, rosas em vaso de
cristal, pedestal, olhos que se abrem. Dando descendência à veracidade dos
fatos. Vimos até aqui o não de tudo, bem ao talho, no corpo do texto de
Lavínia, sim no sim, ela estupefata ao adentrar o quarto do senhor da guerra.
Lavínia, ao encontro, não tem pressa, porém. Senta-se ao pé da cama de Tito
Andrônico e segue a fiar lentamente numa antiquada roca de fuso, vindo algodoar
o piso do quarto com um lençol confeccionado do mais puro entretenimento. Ela
vê o corpo do seu senhor enquanto ele ainda dorme. Mais nítido e maior.
Indigente feito gravetos jogados à terra para germinar. Carne e solo. Ali
dentro, contra uma vetusta cortina de veludo, há heróis que se mesclam: os sete
samurais nele, o zorro nele, a espada de escalibur nem demora a surgir, às mãos
premiadas de louros. Eis ao límpido. Luz e sombra dormitam ali em afinidades. Tal
um atrevido cio. Na lanterna mágica de apresentar raios vermelhos e lascivos.
Contra um fundo lilás. Lavínia é levada até o Arno que arde ao se entregar ao
Mediterrâneo. Feminina ao extremo. Ao se sentir inteira, em infinidade com sol
e sinos – ela, Lavínia, procura pela tessitura do mísero escrito, com que, de
findo, a penu mbra vencesse. Como se, na leitura apaixonada, o etéreo lhe surgisse
concreto no reconstruir cenas. Súbito Lavinia percebe que Tito está desperto.
“Quem és tu?”, ele pergunta atônito. “Eu sou a camareira... Chamo-me Lavínia”,
retrucou ela. “E o que queres no meu quarto?”, ela não sabia o que responder,
pensou tanta coisa, mas resumiu isto: “apenas fiar”. Ocorre que a literatura é
algo enfastioso e movediço como o mascar de um chiclete: ora a literatura é
mentirosa, ora é verdadeira. Miasma de mistérios. Entretanto. Tal é a nudez da
arte. Especificamente. Neste caso que se relata, Tito e Lavínia se revestem da
mais pura verdade. Ela continuou tecendo seu lençol de algodão. Ele levantou-se
e saiu do quarto. Quando retornou Tito tinha nas mãos um espelho excessivamente
polido. Trouxe o espelho e levou-o defronte ao rosto de Lavínia. Com isto Tito
a expõe como ela realmente é. Abruptamente. Lavínia se assustou e deixou cair o
livro que lia. Depois nunca mais tornou a abrir aquele livro.
Beto
Palaio
Nenhum comentário:
Postar um comentário