domingo, 24 de fevereiro de 2013





TITO E LAVÍNIA


“Não há. Nada lá. Não mesmo”, balbuciou Lavínia ante a dúvida de que o silêncio anormal denunciava um acontecimento funesto. Arrepios ao ouvir sinos da meia-noite na igreja distante. Um descampado. O frio é um açoite. A noite é úmida e gelada. Os olhos dela estão embaciados. Quando achamos que tudo vai bem. Um acendedor de lampiões nos esquece apagados num canto da praça. Aquele que nos empresta lumes em encadernações heróicas. Passos de uma notívaga em noite de inspiração fugidia. A confecção de um conto é como uma missa que se reza. Quando um vento mais forte vem na calçada de Copacabana e sopra dois imensos sacos plásticos em direção à Lavínia: um deles era branco, o outro era negro. O vento que os arrasta é caprichoso. O saco plástico branco passa rapidamente à direita dela, e o saco negro corre pela sua esquerda. Que tipo especial de poder abastece o acaso em momentos como este? Divisar o horizonte por esta época, meados dos anos setenta, era praticamente impossível. Vivíamos a saltar de cratera em cratera. Os dias amorfos seriam como bagas vermelhas, vulva de algumas poucas alegrias, se assim fossem permitidas pelas autoridades regulatórias. Impossível precisar quando se rompeu o dique da concupiscência, até então firmemente contristado. Escrever é digitar democracias. Criar prosódias com o inexistir. Quem há de se importar com isto? Ouve-se o ruído incessante de ondas que invadem o calçadão da praia. Lavínia imagina isso desde que achou que o mundo acabaria com o mar invadindo tudo. Uma preleção particular que não tinha antecedentes. Alguns colegas a transtornavam na escola. Que alguns a irritassem, ela não se importava. Mas ela leu uma novela onde o personagem era, na trama, Tito Andrônico, um poderoso general da Roma Antiga, o qual volta triunfante da guerra contra os visigodos. No entanto, a recusa de Tito em se tornar imperador gera uma onda de vingança sem fim. As cenas por vezes chocaram Lavínia, onde ela pensou em desistir de ler as descrições precisas de decapitações e mutilações, além de um estupro e de uma cena de canibalismo involuntário. Lavínia criou coragem e abriu a porta do texto, a qual a levou por um longo corredor, no qual se ouvia o chiado de um telefonema onde um personagem errante se comunicava desde a estalagem até as faldas de castelo distante. Ela evita se livrar de suas culpas e castigos, todavia finalmente, para aquele castelo Lavínia se dirige, e vem depositar, interinamente, num específico corredor, criado a contento do autor, neste entre tantos corredores, as suas dúvidas civilizadas, para finalmente adentrar, não sem titubeios, o magnífico quarto de Tito Andrônico. Ele ainda dorme. Seu elmo e sua armadura peitoral estão ao pé da larga cama de mogno. Sua espada ao alcance da mão. Tito ronca suavemente. Seu rosto demonstra velhice e cansaço. Lavínia descompassa a leitura: sono, senilidade antecipada, exaltação, parentes afins, sobremesa, fieira de peixes, conchas, retalhos de corpos, féretro, cores de anil, perfume, rosas em vaso de cristal, pedestal, olhos que se abrem. Dando descendência à veracidade dos fatos. Vimos até aqui o não de tudo, bem ao talho, no corpo do texto de Lavínia, sim no sim, ela estupefata ao adentrar o quarto do senhor da guerra. Lavínia, ao encontro, não tem pressa, porém. Senta-se ao pé da cama de Tito Andrônico e segue a fiar lentamente numa antiquada roca de fuso, vindo algodoar o piso do quarto com um lençol confeccionado do mais puro entretenimento. Ela vê o corpo do seu senhor enquanto ele ainda dorme. Mais nítido e maior. Indigente feito gravetos jogados à terra para germinar. Carne e solo. Ali dentro, contra uma vetusta cortina de veludo, há heróis que se mesclam: os sete samurais nele, o zorro nele, a espada de escalibur nem demora a surgir, às mãos premiadas de louros. Eis ao límpido. Luz e sombra dormitam ali em afinidades. Tal um atrevido cio. Na lanterna mágica de apresentar raios vermelhos e lascivos. Contra um fundo lilás. Lavínia é levada até o Arno que arde ao se entregar ao Mediterrâneo. Feminina ao extremo. Ao se sentir inteira, em infinidade com sol e sinos – ela, Lavínia, procura pela tessitura do mísero escrito, com que, de findo, a penu mbra vencesse. Como se, na leitura apaixonada, o etéreo lhe surgisse concreto no reconstruir cenas. Súbito Lavinia percebe que Tito está desperto. “Quem és tu?”, ele pergunta atônito. “Eu sou a camareira... Chamo-me Lavínia”, retrucou ela. “E o que queres no meu quarto?”, ela não sabia o que responder, pensou tanta coisa, mas resumiu isto: “apenas fiar”. Ocorre que a literatura é algo enfastioso e movediço como o mascar de um chiclete: ora a literatura é mentirosa, ora é verdadeira. Miasma de mistérios. Entretanto. Tal é a nudez da arte. Especificamente. Neste caso que se relata, Tito e Lavínia se revestem da mais pura verdade. Ela continuou tecendo seu lençol de algodão. Ele levantou-se e saiu do quarto. Quando retornou Tito tinha nas mãos um espelho excessivamente polido. Trouxe o espelho e levou-o defronte ao rosto de Lavínia. Com isto Tito a expõe como ela realmente é. Abruptamente. Lavínia se assustou e deixou cair o livro que lia. Depois nunca mais tornou a abrir aquele livro.


Beto Palaio

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