terça-feira, 19 de fevereiro de 2013



SALTO PARA O AZUL.


Não havia em Azul Ferreira a mínima condição dele se tornar um tuaregue. No entanto o deserto universal o atraia. Azul Ferreira pressentia quando chegava a hora dele partir e virar as costas para tudo. Era o momento dele voar para outros pousos, ser atirado como uma pedra na superfície de um lago em repouso. Saltitante então ele partiria. Vazio pacas. Porém pleno de santidades. Wabi-sabi por inteiro. Como a sabedoria celestial de uma inscrição num bambu murakami. Como uma hóstia escondida num trapo de macramé. Por vezes o destino é como uma pequena tempestade de areia que não pára de mudar de direção. Você pode mudar de rumo, mas a tempestade de areia vai atrás de você. Volta a mudar de direção, mas a tempestade se segue, seguindo no teu encalço. Isto acontece uma vez e outra e outra, como uma espécie de dança maldita com a morte ao amanhecer. Porquê? Porque esta tempestade não é uma coisa que tenha surgido do nada, sem ter nada a ver contigo. Esta tempestade é você mesmo. Algo que está dentro de ti. Por isso, só te resta se deixar levar, mergulhar na tempestade, fechando os olhos e tapando os ouvidos para não deixar entrar a areia e, passo a passo, atravessá-la de uma ponta a outra. Aqui não há lugar para o sol nem para a lua; a orientação e a noção de tempo são coisas que não fazem sentido. Existe apenas areia branca e fina, como ossos pulverizados, a rodopiar em direção ao céu. É uma tempestade de areia assim que deves imaginar. Sobre isso Azul Ferreira filosofa longamente. Hoje ele mora numa vila de pescadores em Ilha Bela. Azul está só enquanto ouve o coaxar de sapos distantes. Isto ele escuta também: o troar de uma sirene de barco, quase inaudível, possivelmente vindo do alto-mar e um cão que late. “Eu estou só nesta cozinha. Barman é meu cachorro que está lá fora. São mundos paralelos o meu e o do meu cão. Eu estou aqui tentando fritar um ovo, enquanto Barman, meu velho cão de caça, está lá fora e começa a ganir.”. Azul sabe que Barman quer passear pela praia e que está agindo assim para fustigá-lo com ganidos. Esta é a maneira dele pedir por este passeio. “Barman, seu velho sabujo, você sempre ganha o que quer... Sempre ganha”. Já com a guia e a coleira na mão, Azul Ferreira conversa com seu cão. Depois eles saem para andar pela praia. Ele desabafa com Barman como se realmente estivesse acotovelado num balcão de bar. Para o cão ele revela seu dia terrível: “Não consegui escrever nada hoje, Barman... A pôrra está encalacrada... Eita texto difícil de parir”. Azul Ferreira está escrevendo seu terceiro livro. No fluir de sua literatura. Como de praxe. Ele habilmente mistura influências da sua leitura de livros baratos, heróis transformistas, zulus das estórias do Tarzã, mulheres de aparência subversivas, potes de geléia mofados, mundos suburbanos, embalagens vencidas, manteigas rançosas, perfumes baratos de maquiagem, cheiros convidativos dos pães que alguém termina de assar. Azul discorre sobre possibilidades do tema. Arrastado pela coleira. O cão continua seguindo pela areia e insiste em querer cheirar uma gaivota morta que a maré alta jogou na praia. “Barman, eu estou também querendo futricar com os meus cadáveres... Estou ferrado... Ando tendo cada lembrança!”. Isto ele desabafa, pois havia escrito para seu novo livro um trecho terrível, embora verídico, que se passara com ele e com a sua mãe. Quando aconteceu o fato, Azul não tinha mais de quatro anos de idade. Mas ele lembra-se claramente. Sua mãe tomando-o pela mão enquanto seguia pelas alamedas estreitas de um cemitério. Ela trazia na cabeça, cobrindo parcialmente o rosto, um grande lenço de cambraia negra, quase transparente. Numa das mãos ela carregava um balde enquanto puxava Azul pela outra mão. Chegando defronte ao túmulo do pai de Azul, ela jogou todo conteúdo daquele balde sobre a lápide. Dentro do balde haviam restos esquartejados de duas galinhas inteiras. Aquele ritual sanguinolento foi rápido, porém decisivo. Algo marcante e inesquecível para ele. Enquanto. Sua mãe gritava a todo pulmões ao despejar aquele restolho sobre o túmulo de seu pai: “não quer comer galinha nova?... Pois tome do que gosta, safado!”. Depois sua mãe o pegou no colo e se afastou rapidamente dali, sem olhar para trás. “Cheira sua gaivota, Barman... Que mal isto faria?”. Azul Ferreira pensa na continuidade e, principalmente, na substancialidade de seu livro. Não queria que ele se tornasse autobiográfico. Mas o aparente controle que Azul pensou ter sobre o texto estava se esvaindo. “É preciso ter disciplina... Total disciplina!”. Azul sabe por experiência que a disciplina é precária, é correta, é estranha, é calmante, é dolorosa, é revolucionária, é profunda, é fiel, é mentirosa. A disciplina é, por fim, desnecessária. No entanto Azul está vivenciando completamente seus personagens. Ele sente-se na pele do nobre Arthur, e vibra com a presença de Vanessa, sua namorada: “Vanessa, eu sei que você virá, como de costume, pontualmente, às oito da noite. Eu não poderia imaginar algo melhor hoje para nós dois: sofá, TV, pipoca e esta chuva lá fora. Falarei para você ficar. Eu embalaria seu sono com esse ritmo cadenciado da chuva tamborilando nos beirais e adjacências. Vanessa, você me conhece há quanto tempo? Então sabe muito bem que eu adoro dormir com um barulhinho de chuva lá fora, e depois acordar com o cheiro de terra molhada”. Azul Ferreira imagina, a partir de seus escritos, a delícia que é dividir a cama com uma mulher a qual poderia amar longamente. Ele está só. Numa casa onde ele divide a solidão com Barman, seu cão de estimação. Azul caminha da geladeira para o console do computador. Ele está com um copo vazio na mão. Desistira de encher o copo com água gelada, pois teve uma brilhante idéia para a continuidade de seu livro: ele levaria seu personagem Arthur para percorrer a velha Escócia. Tornaria mais nobre ainda o Arthur ao compará-lo, levemente, a um rei do passado. Não importa quem. Mas alguém que possuiu a nobreza da autoridade revestida em atos subservientes, vis, biltres e canalhas. No entanto, um rei: “Boatos de que o próprio rei andou por aqui. Onde ele costumava tomar cerveja. Andou pisando duro, inflexível, com sua intransponível majestade. Hoje Arthur de Valença pode usufruir do mesmo ambiente real. As mesmas pedras continuam por aqui. Pavimentos indeléveis. Permanência que se instala ao ignorar o que é fugaz. Tudo passa rapidamente por este mundo, principalmente a madeira, a palha e a carne!”. Há um momento de trégua no novo romance escrito por Azul. Ele dá ao personagem um pouco de oxigênio puro. Faz com que Arthur entre num carro conversível com Vanessa e os leva para passear por um reino encantado permeado por estradinhas campestres, ladeadas por infindáveis muros de pedra. Da alma sincera do escritor, brota a união daquele casal, indivisível até diante da luz dos astros, permeada por uma brisa leve que norteia velas errantes. Entretanto, na sala, Barman derruba um raro vaso de porcelana que ficava no meio da mesinha de centro. Azul, no entanto, vai até lá e fala ternamente com Barman: “Ah, seu bandido, esse vaso pertencia à ela... Aquela insensata que nos abandonou... Soubesse você da monstruosidade do amor... Da sua demência temperada, ao meio de uma doçura refinada... Barman, você é feliz porque desconhece o mar de lagrimas dos amantes”. Depois ele foi colocar Barman para fora. Fazia calor, embora houvesse garoado um pouco. Isto Azul notou ao observar o corredor, que leva ao portão, ainda úmido. Ele lança seu olhar demoradamente para o céu e vê que, ao longe, fagulhas de relâmpagos cruzavam o céu. Ele imagina daquilo se propagar com intensidade. Acha que durante a madrugada a tempestade chegaria até ali. Depois sentou-se na espreguiçadeira do pórtico, com Barman quase lhe servindo de tapete. Ainda discorrendo sobre as propriedades de um romance. Imaginou do amor ser como um sonho, uma fantasia, algo que também sofre tempestades, porém sem nunca ofuscar-se. Pensou, além disso, no arrebol do dia que nascerá na manhã seguinte. “Boa é a tempestade que lava e prepara o novo dia”. Azul então afagou a cabeça de Barman e quis voltar a escrever. Tudo o que ele faria agora era tornar seus personagens felizes. “Custe o que custar... Eu me esfalfo aqui sozinho... Mas meus personagens sempre receberão o melhor que eu possa lhes dar”.


Beto Palaio



Arte: Deidre Quinn

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