O
ORNITORRINCO
Eu vejo flores de plástico por
todos os lados. Estamos cercados de dúvidas que são atrizes de um palco vazio
de respostas. Os opostos se atraem como moscas ao pote de marmelada. Viver mal
e porcamente para depois se acabar morto, porém cercado de flores. Ao entupimento.
Tudo se acaba longe do lar e com a ausência do ar. Em esgar. Enquanto estamos em duelo com a
gravidade. Findos os propósitos. Resumo de acordos táticos onde o amor aparece
como o mais nobre dos sentimentos. Instância maior do ser amado. O amor só nos
traz alegrias e contentamento, enquanto a falta de amor nos causa sofrimento e
dor. “Pega a bola lá, Agrinaldo!”, vozes que lhe imploravam o óbvio naquele
jogo de vôlei na praia: sem bola não há jogo possível. Então Agrinaldo, sem
muita vontade, se afastou alguns metros e se abaixou para tentar pegar a bola.
Mas alguém se adiantou e pegou a bola antes dele, esse alguém viera também
apanhar a bola, e era uma bela moça chamada Avisneuza. Eles se conheceram neste
jogo de vôlei de praia quando, após apanhar a bola, Avisneuza olhou para ele
sem piscar e detonou: “meu amigo, atire a bola mais alto desta vez... É que sua
bola já bateu três vezes na rede”. Logo o jogo seria adiado para o dia
seguinte, pois o sol se punha e muitos tinham desistido da partida e foram
embora. Agrinaldo não viu mais Avisneuza naquele dia, e nem sequer pensou a
respeito. Por absurdo que pareça. Acontecera algo inusitado durante a noite em
Copacabana. Um tumulto para algo que seria notícia no mundo inteiro. Um
ornitorrinco atravessou a Avenida Atlântica. Era algo aterrorizante, um tipo de
jacaré gigante, munido de um ameaçador bico de pato, parou bem no meio da avenida.
Alguém correu para socorrer uma criança que fora apanhada pelo ornitorrinco.
Chegaram tarde, pois o animal havia engolido a criança em poucos segundos. Gritos da
mãe da criança podiam ser ouvidos desde o areão da praia. O jogo de vôlei parou
imediatamente. Todos nós, eventuais esportistas, corremos em direção aos gritos
de desespero. O ornitorrinco ainda estava lá no meio da avenida. Surgiu um
guarda civil que desferiu um tiro à queima-roupa na cabeça do animal. Alguém
trouxe um punhal muito afiado e abriu a barriga do ornitorrinco. Dali foi retirada uma criança que não sofrera sequer um arranhão. Agrinaldo acorda em meio aos
lençóis em desalinho. Tudo não passara de um sonho absurdo que ele teve. Ele
nem quis contar esse sonho incoerente para seus amigos. A normalidade da
existência logo o faria esquecer do ornitorrinco. Duas semanas adiante ele está
indo para Niterói e vê uma linda mulher, acomodada na barca, entretida em ler uma revista
Capricho. Agrinaldo a reconheceu, mas ela não tirava os olhos da revista. Ele
achou oportuno e tomou iniciativa de falar com ela. “Você é a mesma do jogo de
vôlei em Copacabana?”. Coincidentemente ela era a mesma pessoa. Entretanto Avisneuza nem demonstra tanta surpresa assim: "Ah, da próxima vez tente não acertar a bola na rede!". Eles riram e logo estavam
conversando coisas mais sérias. Agrinaldo nem sabe porque começou a falar com
ela sobre seu sonho com o ornitorrinco. Avisneuza, pela primeira vez desde que
se conheceram, mostrou-se vivamente interessada por algo. Ela quis saber tudo a
respeito daquele sonho. Depois ficou pensativa e falou para Agrinaldo: “isto me
impressiona muito, pois eu também já sonhei com um ornitorrinco. Era um animal
medonho que me seguia enquanto eu descia correndo por uma escadaria em espiral. Eu estava desesperada e ele me seguia de modo aterrorizante”. Agrinaldo não levou
muito a sério o que a moça lhe falava, mesmo assim pergunta: “e como acabou seu
sonho com o ornitorrinco?”, ela finalizou bastante pensativa: “terminou que a escadaria seguia até o porão e ali havia
uma imensa lagoa feita de milhares de flores. Depois eu me afundei nas flores e não vi mais o
ornitorrinco”. Ambos ficaram em silêncio observando os limites da Baia da Guanabara
sendo preenchido por grandes navios. Não falaram mais nada. Mas Avisneuza
quebra o silêncio: “topa irmos a um cinema qualquer dia desses?”, Agrinaldo
topou na hora: “claro que sim”. Uma quinzena depois. Agrinaldo e Avisneuza
calharam de se apaixonar motivados por uma estranha coincidência, algo que se
menciona de passagem e que eventualmente se desfaz na basílica oceânica do
existir. Com este ato ou, melhor dizendo, com isto ou, melhor dizendo, desta
maneira o casal abusou da regra de que o amar judicioso exige escolha moderada, intercedida por um namoro alongado, um noivado esticado, ou um casamento muitas vezes
adiado. O fato é que eles acabaram por se casar em menos de um ano. Tudo para
contrariar as regras estabelecidas do relacionamento seguro. Na verdade eles foram como
que engolidos por um ornitorrinco chamado destino.
Beto Palaio
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