MALINA
Há na distância um lenitivo
brusco e aceito, barcos que não chegam, velas que buscam um vento que não há,
vapores que passam apressados, marinheiros acovardados e preguiçosos, calor em
demasia no porto do Rio de Janeiro. Malina levanta-se e coloca as mãos, ambas,
às costas, queixa-se dos rins, tem uma salobra na boca, dormira mal, queixa-se
à janela trancada à tramelas. Um marcar de passos até a torneira da cozinha,
seu copo de latão, úmido ainda desde a última vez que tomou água, sua solidão
escrita em objetos únicos, uma faca, um garfo, um prato. Seu homem marinheiro
foi para o passeio, como ela chama, ou para a luta de mares, portos ocasionais
e tropas rebeladas. Ele lhe descrevia o trivial de um navio como sendo uma
tortura. Para Malina apenas cabia sonhar com uma vida aventureira e, de certo
modo, proibitiva.
Sábado, 1 de janeiro. Malina
escreveu três cartas que jamais seriam enviadas, em estilo floreado,
equilibrado em cada vocábulo, com verbos escolhidos, advérbios raros, adjetivos
concisos e substantivos em profusão. Malina colocou ainda nessas cartas, em
números bem feitos, o volume de contas que estavam acumulando e que nunca foram
pagas. O tempo lá fora está de moderado à seco. Malina foi até o quintal dos
fundos e soltou sua única galinha para ciscar na areia suja. E nada mais para o
primeiro dia do ano. Segunda-feira,
3 janeiro. O tempo ameaçou de mudar hoje. Uma tempestade se formou ao longo da
linha do mar. Malina esteve atarefada indo até o porto. Chegou cansada e foi
direto para a cama. Quando acordou já era noite. Ela resolveu não levantar.
Ficou pensando no cais e toda agitação que viu por ali. Quinta-feira, 13 de
janeiro. Malina escreveu mais algumas cartas. Numa delas pedia fotografias para
seu namorado Paulo Serrado, o marinheiro. Depois cobriu-se de um manto cor de
terra, retirou do armário da sala um velho lampião à querosene que herdara de
sua mãe. Passou grande parte da noite de 13 para 14 de janeiro abraçada ao
lampião, no escuro, lembrando-se dos detalhes de sua vida quando morava com sua mãe. Terça-feira,
25 de janeiro. Foi um dia leve e agradável. Malina estava radiante de alegria.
Notou que um pé de alface apodrecera na pia. Nem se importou com o vegetal em
decomposição. Tomou daquele monturo fétido e jogou para a galinha que ciscava
no quintalzinho dos fundos. Ali haviam alguns itens já enferrujados, muita palha
de gramas secas, uma roda de carroça semi-enterrada na areia. Um jardinzinho
deveras abandonado. Quarta-feira, 26 de janeiro. Um dia chuvisquento. Malina
separou velhas fotos e alguns cartões postais. Numa das fotos amarelecidas
haviam duas jovens da escola local. Reconhecia-se Malina abraçada com uma
colega. Malina apenas balbuciou “coitada”, não sabendo se falou aquilo para a
colega ou se para ela mesma. Quinta-feira, 27 janeiro. Malina não quis se
levantar neste dia. Resolveu ficar na cama e relembrar quando dormiu, neste
mesmo travesseiro, com Paulo Serrado. O dia lá fora estava lindo. Isso
adivinhava Malina, observando a quantidade de luz que entrava pelas frestas da
veneziana e também pelos muitos cantos de pássaros a festejarem a vida.
Dentro de casa um lenitivo
brusco e aceito, novidades que não chegam, roupas dependuradas que buscam um
vento que não há, sentimentos covardes e preguiçosos, calor em demasia neste
bairro do Rio de Janeiro. Malina levanta-se e coloca as mãos, ambas, no rosto,
queixa-se de dor nos olhos, tem marcas de quem chorou muito, mas ela dormira
bem, apesar disto, Malina queixa-se com a porta da frente aberta para uma rua
vazia. Com um olhar sem pressa repassou as velhas casas da vizinhança, sua
solidão acompanhada por rudimentos únicos, beirais de telhados, muros que
ladeiam quintais arborizados, janelas fechadas da casa vizinha, postes que
carregam um excesso de fios, um trecho de azul do céu muito limpo. Seu namorado
Paulo Serrado uniu-se com uma tropa de guerra e foi para o mar. Depois ele iria
para um lugar qualquer da Itália lutar contra os alemães. Ele esteve com Malina
durante a noite passada. Paulo Serrado não estava otimista de sua missão.
Descrevia o trivial de um navio de guerra como sendo uma tortura. Malina apenas
se resignava em sonhar e esperar. Um longo esperar.
Beto
Palaio
Pintura: J. W. Waterhouse
2 comentários:
É o primeiro conto que leio do autor, mas duas coisas vieram na minha cabeça:
- "As pêras" e "O trabalho das nuvens" - f. gullar
- e o último filme que vi do Almodóvar ontem, "A flor do meu Segredo"
______
me explico:
é um passar de tarde sem vento e o calor. O oco de existência pela natureza morta, a espera do andar de trem que não anda...
esse conto parece um sonho, um risco de sonho que se teve e que não se quer deixar ir embora sem o analisar..
os fios soltos das entrelinhas e o estilo são o que me acenderam o fogo desse comentário: a espera x a ação.
Malina me fez lembrar o ótimo "Sair" do Antônio Cícero, uma vez que cavucou a paralisia e a profundidade do não-se-mexer que existe na gente..
estamos aqui, prazer lhe conhecer e espero que nos reencontremos em breve..
abs, Jonas.
Grato, Jonas pelo luxuoso comentário... Eu vejo na estória geral da literatura um imenso discurso de solidão... Kafka, Dostoievsky e outros tantos... Mas recentemente eu tenho me aprofundado nos autores pósmodernos como (exemplo) Spalding Grey... E Nelson Rodrigues então? Solitário absoluto!Sempre soube que o artista é um predestinado (prepare-se você Jonas!)à solidão... Não há arte sem solidão... É o artista e a obra... Isso é ruim? Claro que não... Isso é um passaporte para a arte... Quem quiser fugir desse desígnio e ao mesmo tempo fazer arte, não vai fazer arte de jeito nenhum! Abraço, gostei do seu blog + escritos seus... Dont stop!
Postar um comentário