domingo, 3 de fevereiro de 2013



AMNÉSIA


Amnésia. Uma maneira inusitada para se iniciar um conto. Será que Fiammeta sofre mesmo de amnésia? Ficamos boquiabertos. Sem sermão nenhum. Entretanto ela está indo para o quintal dos fundos para poder acender um cigarro escondido de todos. Amnésia. Apenas isso. Socialmente, ela é uma mistura estranha de graciosidade e paranóia. Por um momento Fiammeta sente-se desprotegida. Acha que um de seus olhos é maior que o outro. O resultado disto é que ela, tentando resolver o mistério, passa horas diante do espelho do banheiro. Amnésia. Ela não se acha uma pessoa fora do normal. Como qualquer ser humano que vive a cercar-se de amigos e parentes, às vezes ela sente-se mal interpretada, frustrada e impotente. Ontem mesmo—será que foi ontem?—ela recebeu a visita inesperada de uma tia. Sem coca-cola em casa, Fiammeta abriu a garrafa de um raro uísque escocês que o marido tinha como relíquia intocável. Amnésia. Em momentos assim ela dá razão à frase “melhor um amigo na mão que dez voando”. Isto se traduz da maneira mais prática de que Fiammeta é uma excelente contadora de estórias e quem estiver à mão será premiado com um falatório sem limites. Amnésia. Ela é assim mesmo. Sua mãe já desistiu de lhe chamar atenção. Seu irmão Sidney também não toca em determinados assuntos com ela. Mas as amigas que ela fica sem ver por mais de uma semana, em geral são brindadas com um espetacular resumo de fatos que por vezes parece ser interminável. Amnésia. Pode ser esnobismo de uma alpinista social. Então, novamente, sem qualquer aviso, ela está diminuindo alguém com farpas devastadoras, apenas por essa pessoa ser uma apreciadora indiferente de sua presença numa eventual roda social. Amnésia. “Qualquer um fica esperto e, depois de algum tempo, aprende a salvar-se." Ela disse isto em francês numa ruidosa tarde de pôquer na casa do embaixador da Martinica. Fiammeta fala francês fluentemente e chegou a ter em seu guarda-roupa um casaco especialmente concebido para ela por Givenchy. Amnésia. No dia do batizado de sua sobrinha houve um almoço informal onde um dos convidados estava usando uma gravata vermelha. Fiammeta viu naquilo um símbolo fálico e falou para seu irmão que aquele homem estava lhe incomodando por ter um falo gigante pendurado no pescoço. Amnésia. Seu psicanalista apareceu na revista Caras. Ela nem sabia que ele tinha cinqüenta e oito anos de idade. Isto a revista descobriu e publicou. Na sua próxima seção de “encolhimento” ela vai chamar o seu analista de “meu velho”, só para ver como ele se sai desta. Amnésia. No divã, bem no inicio de sua análise, ela recordou o namoro que tivera com um moço que servia o exército. Foi um com quem ela se escondeu no laranjal que havia nos fundos do quintal de sua avó. Depois que fizeram amor eles chuparam laranjas e ela, totalmente nua, colocou em sua cabeça o quepe de soldado de seu namorado, enquanto chupava uma laranja ruidosamente. Amnésia. Ela achava que tinha total desdém pela morte, até que se viu em apuros durante um vôo para Nova Yorque, quando aquele avião passou por momentos de terríveis turbulências. Neste dia ela notou que a moça ao seu lado rezava com um terço católico entre as mãos. Ela quis também rezar no mesmo terço, junto com a moça. E assim fizeram. Quando o avião pousou, ela fez questão de ficar com o cartão de visitas daquela moça. Só que nunca teve coragem de ligar para ela e o cartão acabou sendo jogado no lixo. Amnésia. Depois do apuro que passou no avião, Fiammeta apregoa que não tem medo de mais nada. Ela vive desejando que lhe aconteça um terremoto ou um furacão, mas essas coisas não acontecem apenas quando as desejamos. Amnésia. Ela ouve tocar um saxofone ao longe. Lembra-se de um momento especial de sua infância, mas não sabe precisar o motivo. Assim ela vai até a janela e descobre que um belo dia de sol está valorizando ainda mais o roseiral de seu jardim. Fiammeta sai para fora e toma um susto. Ela nem quintal tem, pois mora num apartamento no décimo andar. Então ela aperta o botão do elevador, pois quer ir para a rua saber de onde vem a música de saxofone que ouve sem parar. Amnésia. Fiammeta andou vários quarteirões em Copacabana. Ela não sabe onde está. Resolve perguntar para um jovem que está indo para a praia carregando uma prancha de surfe. “Sua casa fica lá”, diz o rapaz apontando para o mar. Então Fiammeta vai indo em direção ao mar. Ali o barulho da arrebentação se apresenta em timbres de um saxofone que toca um samba-sincopado. Ela entra no mar e dança ao mais belo som que jamais ouvira. Depois ela dorme. Dorme profundamente. Amnésia.

Beto Palaio

Arte: Instalação de Daniel Spoerri.

Um comentário:

Ianê Mello disse...

É... a vida que escapa da memória e se perde em devaneios.
Quando é melhor esquecer para que a fantasia tome o lugar da realidade... sabe-se lá...
excelente conto, para quem apreciar ler nas entrelinhas.

Parabéns!