DARUNE E O CADASTRO DE ENDEREÇAMENTO POÉTICO.
I. Além disto. É um livro sobre
poesia brasileira editado vinte anos antes. Além disto. Apresentava lanhos e
marcas e incisões de procedências incertas. Além disto. Com laterais repletas
de rasuras e cortes, acrescidas de algumas páginas amarelecidas pelo tempo. Além
disto. Uma mancha horrorosa, algo escuro e informe, feita de café ou sangue ou
urina, adornava assustadoramente o corpo do livro. II. Darune era o dono do livro.
Por mais que se esforce, ele não lembra de ter deixado café ou sangue ou urina
manchar assim, de forma alcantilada, aquele estimado livro. “Acredito que um poema
deva agir como uma mancha num brim especialmente encomendado para uma festa de
noivado, mas essa mancha num livro da própria poesia é contundente demais”,
Darune filosofa sobre algo deveras inverossímil, à imaginar algum incauto que
lhe pedisse emprestado aquele livro unicamente para manchá-lo de café ou sangue
ou urina. III. Darune se digladiava, eventualmente, réu confesso, contra o
fosso da ausência de poesia em seus escritos recentes. Sabedor de que um copo
vazio está cheio de ar, ele se comportava, no entanto, como um otimista. Acreditava
na poesia vinda das ruas—bocas de lobas gritando através de bocas de lobos—assim
como era crédulo de que a novíssima poesia brasileira nasceria a partir do
fervilhante bairro da Lapa. Lá, no vis-à-vis, Darune vistoriava pessoalmente o
acervo lapiano que despejava epopéias no cotidiano carioca: as escadarias
ladrilhadas, o esparramado aqueduto, as estreitas ruas, os grafites, o casario
centenário, o ar soteropolitano da Lapa. IV. Na verdade Darune ia mais longe:
imaginava a Lapa como célula máter e, no entorno, um absoluto porvir da cidade
do Rio de Janeiro se transformar no centro mundial da poesia. Eis que, para ele,
a Lapa era uma rainha entronada no solo palaciano do Rio, pátria das letras,
centro mundial da rima, ventura de almas plácidas, palco de figuras mofinas, meladas,
burguesas, comportadas, saradas, arteiras e, até, as eventualmente degradadas,
fudidas, degringoladas, infames e bêbadas. V. Eis o adocicado e rude porvir da
poesia imberbe, a surgir, quem sabe, das notações avulsas de um mendigo qualquer,
anfitrião que fosse, meirinho do alegre juízo, na bendita Lapa. “Um novo Rimbaud
pode estar, neste exato momento, ali na esquina catando latas”, isso disse Darune
para um moreno sorridente que tinha por profissão ser fiscal da Prefeitura, e que
aportou num dos diversos bares da Lapa para poder se espraiar no absinto da
cerveja e no borogodó do samba. “É bom falar com alguém da Prefeitura”, disse o
Darune para Dirceuzinho da Marília, o nome do moreno que é um fiscal da
municipalidade, portador de ofício e carteirinha. “É bom falar contigo, pois eu
tenho um projeto poético e porreta para esta nossa cidade”, continuou Darune,
“veja bem, a intenção é a de revolucionar essa pasmaceira, ao injetar a febril poesia
no cotidiano de uma cidade inteira”. VI. Eis que ele descrevia sua aspiração
sem quase dar espaço para controvérsias. É um Darune determinado e contundente
que continua a expor seus planos para Dirceuzinho da Marília: “com essa
iniciativa pioneira, todas as ruas do Rio de Janeiro serão rebatizadas”, isto
Darune concluiu, no arremate do “senão vejamos”, já dando exemplos versáteis,
para o troca-troca, com pretensos e poetizados nomes: Rua da Pedra no Meio do
Caminho, Rua do Sol na Banca de Revista, Praça do Losango Cáqui, Rua do Cão sem
Plumas, Rua do Porquinho da Índia, Praça do Toque de Cetim, Rua do Afogado da Lagoa
Rodrigo de Freitas, Avenida dos Pés Descalços, Praça dos Meninos Carvoeiros, Rua
dos Degolados da Nuca Nua, Praça do Cancioneiro Martelado, Rua Nossa Senhora da
Ternura, Travessa do Impossível Carinho, Avenida da Lua de Março, Rua das Lágrimas
de Colombina, Travessa Silêncio do Amante, Rua do Xixi Angelical, Praça da
Única Rosa...”, e assim Darune desfolhou uma quantidade enorme de nomes fantasiosos
os quais sugeria serem trocados pelos atuais nomes impessoais, em gênero e grau,
que povoam as placas de logradouros públicos no Rio de Janeiro. VII. Logo após,
ainda atônito, mas com o fôlego do falar retomado, Dirceuzinho da Marília
sugere que o projeto de Darune seja apresentado por escrito: “o Prefeito
detesta projetos que não estejam grafados em papel vegetal e resguardados em
envelope de fina lavratura”. Darune promete concluir e entregar o projeto. Em
seguida ele propõe uma confraternização, com direito ao birinaite da saideira,
ao Dirceuzinho da Marília. VIII. Na claquete do festejo, eis o marcante brinde,
estilo osquindô-lê-lê, acompanhado com a abertura da “penúltima” garrafa de
cerveja: “pela Lapa da poesia!”, comemorou Darune, “pela poesia da Lapa!”,
festejou Dirceuzinho da Marília.
Beto
Palaio
Um comentário:
A Lapa como centro poético é uma boa idéia presente em seu conto. A Lapa dos contrastes, da diversidade,da pluralidade, num harmônico e pacífico convívio é um bom lugar para aportar a poesia. Adorei seu conto, mô!!! Bjs.
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