terça-feira, 12 de fevereiro de 2013




MALINA

Há na distância um lenitivo brusco e aceito, barcos que não chegam, velas que buscam um vento que não há, vapores que passam apressados, marinheiros acovardados e preguiçosos, calor em demasia no porto do Rio de Janeiro. Malina levanta-se e coloca as mãos, ambas, às costas, queixa-se dos rins, tem uma salobra na boca, dormira mal, queixa-se à janela trancada à tramelas. Um marcar de passos até a torneira da cozinha, seu copo de latão, úmido ainda desde a última vez que tomou água, sua solidão escrita em objetos únicos, uma faca, um garfo, um prato. Seu homem marinheiro foi para o passeio, como ela chama, ou para a luta de mares, portos ocasionais e tropas rebeladas. Ele lhe descrevia o trivial de um navio como sendo uma tortura. Para Malina apenas cabia sonhar com uma vida aventureira e, de certo modo, proibitiva.

Sábado, 1 de janeiro. Malina escreveu três cartas que jamais seriam enviadas, em estilo floreado, equilibrado em cada vocábulo, com verbos escolhidos, advérbios raros, adjetivos concisos e substantivos em profusão. Malina colocou ainda nessas cartas, em números bem feitos, o volume de contas que estavam acumulando e que nunca foram pagas. O tempo lá fora está de moderado à seco. Malina foi até o quintal dos fundos e soltou sua única galinha para ciscar na areia suja. E nada mais para o primeiro dia do ano.  Segunda-feira, 3 janeiro. O tempo ameaçou de mudar hoje. Uma tempestade se formou ao longo da linha do mar. Malina esteve atarefada indo até o porto. Chegou cansada e foi direto para a cama. Quando acordou já era noite. Ela resolveu não levantar. Ficou pensando no cais e toda agitação que viu por ali. Quinta-feira, 13 de janeiro. Malina escreveu mais algumas cartas. Numa delas pedia fotografias para seu namorado Paulo Serrado, o marinheiro. Depois cobriu-se de um manto cor de terra, retirou do armário da sala um velho lampião à querosene que herdara de sua mãe. Passou grande parte da noite de 13 para 14 de janeiro abraçada ao lampião, no escuro, lembrando-se dos detalhes de sua vida quando morava com sua mãe. Terça-feira, 25 de janeiro. Foi um dia leve e agradável. Malina estava radiante de alegria. Notou que um pé de alface apodrecera na pia. Nem se importou com o vegetal em decomposição. Tomou daquele monturo fétido e jogou para a galinha que ciscava no quintalzinho dos fundos. Ali haviam alguns itens já enferrujados, muita palha de gramas secas, uma roda de carroça semi-enterrada na areia. Um jardinzinho deveras abandonado. Quarta-feira, 26 de janeiro. Um dia chuvisquento. Malina separou velhas fotos e alguns cartões postais. Numa das fotos amarelecidas haviam duas jovens da escola local. Reconhecia-se Malina abraçada com uma colega. Malina apenas balbuciou “coitada”, não sabendo se falou aquilo para a colega ou se para ela mesma. Quinta-feira, 27 janeiro. Malina não quis se levantar neste dia. Resolveu ficar na cama e relembrar quando dormiu, neste mesmo travesseiro, com Paulo Serrado. O dia lá fora estava lindo. Isso adivinhava Malina, observando a quantidade de luz que entrava pelas frestas da veneziana e também pelos muitos cantos de pássaros  a festejarem a vida.

Dentro de casa um lenitivo brusco e aceito, novidades que não chegam, roupas dependuradas que buscam um vento que não há, sentimentos covardes e preguiçosos, calor em demasia neste bairro do Rio de Janeiro. Malina levanta-se e coloca as mãos, ambas, no rosto, queixa-se de dor nos olhos, tem marcas de quem chorou muito, mas ela dormira bem, apesar disto, Malina queixa-se com a porta da frente aberta para uma rua vazia. Com um olhar sem pressa repassou as velhas casas da vizinhança, sua solidão acompanhada por rudimentos únicos, beirais de telhados, muros que ladeiam quintais arborizados, janelas fechadas da casa vizinha, postes que carregam um excesso de fios, um trecho de azul do céu muito limpo. Seu namorado Paulo Serrado uniu-se com uma tropa de guerra e foi para o mar. Depois ele iria para um lugar qualquer da Itália lutar contra os alemães. Ele esteve com Malina durante a noite passada. Paulo Serrado não estava otimista de sua missão. Descrevia o trivial de um navio de guerra como sendo uma tortura. Malina apenas se resignava em sonhar e esperar. Um longo esperar.


Beto Palaio 



Pintura: J. W. Waterhouse

2 comentários:

jonasnepomuceno disse...

É o primeiro conto que leio do autor, mas duas coisas vieram na minha cabeça:

- "As pêras" e "O trabalho das nuvens" - f. gullar

- e o último filme que vi do Almodóvar ontem, "A flor do meu Segredo"
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me explico:

é um passar de tarde sem vento e o calor. O oco de existência pela natureza morta, a espera do andar de trem que não anda...

esse conto parece um sonho, um risco de sonho que se teve e que não se quer deixar ir embora sem o analisar..

os fios soltos das entrelinhas e o estilo são o que me acenderam o fogo desse comentário: a espera x a ação.

Malina me fez lembrar o ótimo "Sair" do Antônio Cícero, uma vez que cavucou a paralisia e a profundidade do não-se-mexer que existe na gente..

estamos aqui, prazer lhe conhecer e espero que nos reencontremos em breve..
abs, Jonas.


Beto Palaio disse...

Grato, Jonas pelo luxuoso comentário... Eu vejo na estória geral da literatura um imenso discurso de solidão... Kafka, Dostoievsky e outros tantos... Mas recentemente eu tenho me aprofundado nos autores pósmodernos como (exemplo) Spalding Grey... E Nelson Rodrigues então? Solitário absoluto!Sempre soube que o artista é um predestinado (prepare-se você Jonas!)à solidão... Não há arte sem solidão... É o artista e a obra... Isso é ruim? Claro que não... Isso é um passaporte para a arte... Quem quiser fugir desse desígnio e ao mesmo tempo fazer arte, não vai fazer arte de jeito nenhum! Abraço, gostei do seu blog + escritos seus... Dont stop!